A maioria das vezes em que “ValeTudo” é lembrado pelo senso comum, os primeiros personagens que vêm à cabeça são, basicamente, as antológicas vilãs Odete Roitman e Maria de Fátima, vividas respectivamente por Beatriz Segall e Gloria Pires. Mas seria injusto dizer que “Vale Tudo” se resumiu a elas, como é igualmente injusto o título desse artigo, já que também tivemos personagens masculinos maravilhosos e igualmente complexos, como Ivan (Antonio Fagundes) e Marco Aurélio (Reginaldo Faria). O primeiro era o mocinho da trama, mas com quase tantos defeitos quanto o segundo, que era o vilão. Ivan era ambicioso, egoísta, carreirista e nem tão honesto assim. Já Marco Aurélio, o vilão, apesar de injusto, machista, desonesto e cínico, por outro lado, era um pai zeloso e preocupado, inclusive com o enteado. Esta é a prova de que, em “Vale Tudo”, nada é óbvio ou clichê. Tudo é mais complexo e mais humano, como a própria vida. Por isso, mais do que um retrato da corrupção no país, “Vale Tudo” continue cativando tanto o público até hoje: apesar das tramas rocambolescas, como toda boa novela, os personagens poderiam ser cada um de nós. Partindo desse princípio, uma rápida olhada no universo feminino da trama nos mostra como sete mulheres foram fundamentais para a trama. Diferentes entre si, são, praticamente, arquétipos de comportamento de nossa sociedade e merecem destaque, já que, poucas vezes em uma novela, tivemos sete personagens femininas tão fortes e cheias de possibilidade.
Não é exagero dizer que Raquel Acioly, a grande heroína da trama, que após sofrer um golpe da própria filha, perde tudo e reconstrói sua vida do nada, é a alma e o coração da novela. Das tripas coração, ela toma para si as rédeas de sua vida e é o grande exemplo positivo da trama e fez com que o público se solidarizasse com ela, vibrasse com suas viradas e se emocionasse com seu triunfo. Excessivamente ingênua, no início da trama, Raquel aprende através da dor e do trabalho e sempre renasce após cada derrota. Uma verdadeira fortaleza. E, certamente, toda essa intensidade de emoções não seria a mesma se sua intérprete não fosse ninguém menos que Regina Duarte, a atriz mais popular do Brasil, que não teve medo do ridículo, se entregou de corpo e alma, de maneira intensa, flertando muitas vezes com o patético, mas dando uma verdade impressionante ao papel. O público jamais ficou indiferente a ela, seja se irritando com seus gritos e com sua inocência exagerada, seja sentindo na própria pele, o drama da mãe sofredora e da mulher valente que segura seu destino à unha. O interessante é que, mesmo Raquel, o baluarte dos bons valores da novela, também dá suas derrapadas éticas, ao se encontrar com o amante na pousada de uma amiga em comum da esposa dele. Enfim, em um mundo cheio de falhas e imperfeições, Raquel não foi exceção.
Do outro lado da arena, está Maria de Fátima, a filha desnaturada, cuja ambição e vontade de ascender socialmente, eram maiores do que tudo, inclusive do que o amor pela própria mãe. Um aspecto interessante dessa personagem é que, diferente da maioria das vilãs, Fátima não é vingativa, nem rancorosa. Seus atos de vilania eram movidos, pura e simplesmente pela ambição. Fátima deu um golpe na própria mãe, roubou o namorado da melhor amiga, vendeu o próprio filho, mas nada disso era pessoal. Tudo tinha como foco a vitória e, para isso, ela não via obstáculos. Outro aspecto incomum dessa vilã é que ela sofria e se dava mal o tempo todo, até mais do que a heroína, o que fazia com que o público torcesse muitas vezes para que suas armações dessem certo. Fátima se metia em enrascadas o tempo todo e sempre escapava delas por um triz. Mas o que realmente é fascinante na personagem também é sua complexidade. Fátima tinha seu calcanhar de Aquiles: o amor por César (Carlos Alberto Ricceli), que lhe rendeu sua derrocada. Além disso, Fátima sofria cada vez qua fazia mal à mãe e tentou várias vezes se reaproximar dela. Dentro de seu conceito de moral, Fátima nunca desejou fazer mal a Raquel, embora, muitas vezes, isso fosse necessário para que alcançasse seus objetivos. E nem preciso dizer que Gloria Pires deu um show. A atriz compreendeu todas as nuances e complexidades da personagem e fez o público vibrar e reagir o tempo todo com seus atos. Com muita justiça, Gloria entrou definitivamente para o rol das grandes atrizes com a personagem.
Símbolo da injustiça, da corrupção e do poder dos ricos sobre os pobres, Odete Roitman, a princípio, nos parece o verdadeiro cão chupando manga. Implacável com os inimigos, insensível ao sofrimento humano e com um conceito bem deturpado de moral, a vilã diz frases desconcertantes sobre o país, por quem nutre um profundo desprezo. Há quem concorde com muitas dessas declarações, mas o fato é que, por trás dessa imponente couraça, se esconde uma mãe zelosa, sofre com a infelicidade dos filhos. Em uma das melhores cenas da novela, vimos uma Odete frágil, desarmada, impotente diante do alcoolismo da filha, pedindo perdão à irmã Celina, de quem tanto tripudia. Verdadeiro show de Beatriz Segall, que viveu Odete com tanta perfeição, que precisa provar até hoje que é capaz de viver personagens de outra natureza.
Falando em show de interpretação, talvez a grande injustiçada da novela seja Nathalia Thimberg, que viveu a doce e cordata Celina, irmã da megera Odete e constantemente dominada por ela. Apesar de uma personagem aparentemente fraca, a interpretação de Nathalia esteve longe de ser apagada. Nem sempre tão doce assim, Celina, muitas vezes, precisou ser sonsa e dissimulada para sobreviver à dominação da irmã megera e durante boa parte da trama foi a responsável por tirar o sono de Maria de Fátima, ao ameaçar desmascará-la perante todos. E Celina se revelou dona de um humor irônico e de um sarcasmo tão inteligente quanto o da própria Odete. A atriz conseguiu construir uma Celina apaixonante, aparentemente tola e alienada. Mas em certos momentos, vimos que, mais do que essência, era uma estratégia de sobrevivência da personagem. A atuação de Nathalia Thimberg, a exemplo das atuações de Regina Duarte, Renata Sorrah, Gloria Pires e Beatriz Segall, merece entrar para o panteão das grandes interpretações da novela.
E como se não bastasse, o clã dos Roitman ainda conta com outra personagem marcante: Heleninha. Disparada a melhor atuação de todos os tempos de uma personagem alcóolatra, Renata Sorrah deitou e rolou com as inúmeras possibilidades de sua personagem. Frágil, insegura e completamente dominada pela mãe, Heleninha convive com a culpa de se achar responsável pela morte do irmão, sem saber que a culpa de tudo fora da própria mãe. Em seus momentos sóbrios, a pergonagem tem sido chamada de chata pelos usuários do Twitter que acompanham a exibição da novela e publicam seus comentários simultaneamente. Mas a cada porre, é uma explosão de elogios à atriz, cuja entrega ao sofrimento da personagem, é absolutamente impressionante. Heleninha vai da angústia à euforia em um passe de mágica, o que poderia ser um trampolim para a caricatura, se fosse defendida por uma atriz mediana. Mas em se tratando de Renata Sorrah, o público também acompanha e compartilha desse carrossel de emoções, indo ás gargalhadas com a divertida embriaguez de Heleninha e também sofrendo com suas terríveis consequências. Personagem complexo, atriz superlativa.
No meio de tanta fera, coube à Lídia Brondi o mais ingrato dos personagens: o de mocinha romântica. E com tantas personagens femininas fortes e avassaladoras na trama, seria até normal que a “chérie” Solange Duprat ficasse totalmente ofuscada. Mas não foi o que aconteceu. Sim, Solange era lindinha, meiga, amiga, adorável, mas também soube ser lutadora e não se intimidou diante dos golpes da falsa amiga Maria de Fátima e enfrentou Odete de igual pra igual algumas vezes. Além do talento e carisma da atriz, também foi fundamental a construção de uma mocinha moderna, que lutava pelo que queria e não hesitava em partir para uma produção independente (muito em moda na época) quando quis ser mãe. Suas roupas, penteados e sua gíria “chérie” viraram mania na época e até hoje, há quem diga que Solange é uma das melhores mocinhas de novela, já que foi uma perfeita combinação dos valores positivos que uma mocinha deve ter, mas sem se render à chatice, na maioria das vezes, inerente a esse tipo de personagem.
Fechando o timaço, está Leila, que se manteve discreta na maior parte da trama. No início da novela, fazia um sutil contraponto com a Raquel. Enquanto esta última, não hesitava em arregaçar as mangas e trabalhar, Leila queria o caminho mais cômodo e não via problema algum em ser sustentada pelo ex-marido. Chegou a trocar o homem que amava, Renato, por outro que lhe oferecia mais estabilidade emocional e financeira. Leila nunca foi uma vilã, tampouco tinha a integridade de uma Raquel ou de uma Solange. No meio desse caminho, Cassia Kiss, uma excelente atriz em franca evolução, soube dar coerência a essa personagem que se mostrou fleumática na maior parte da trama até sua explosão ao assassinar Odete Roitman em seu único momento de descontrole emocional da trama. Isso garantiu a Leila o passaporte para a galeria de personagens antológicos de nossas novelas.
Por essas e outras, “Vale Tudo”, até hoje continua sendo uma novela exemplar que, se não subverteu a fórmula surrada do folhetim como “Roque Santeiro”, por exemplo, ao contrário, se apropriou dessa fórmula como poucas novelas, dando um gás totalmente novo e criativo. Mesmo que tenha contado com atrizes maravilhosas, que defenderam tão bem seus personagens, merecem aplausos efusivos o trio de autores, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, por criar personagens tão densas e ricas do universo de “Vale Tudo”, uma verdadeira aula de roteiro, direção e interpretação.