Mais um convidado pra lá de especial, que nos brinda com um
texto INCRÍVEL sobre uma novela, que
representa um marco da emancipação feminina: “Locomotivas”, de Cassiano Gabus Mendes. Marcelo Rissato, jornalista, roteirista, fã nº 1 de
Norma Blum e enciclopédia viva da teledramaturgia brasileira, não se limita a
falar apenas da novela e nos brinda com todo um panorama da história das
conquistas da mulher até culminar no ano de 1977, ano em que a novela estreou e
não por coincidência, mesmo ano em que a Lei do Divórcio no Brasil foi
aprovada. Vale lembrar que, no ano anterior, Janete Clair já tinha escrito uma novela chamada “Duas Vidas”, na qual a protagonista
Leda (Betty Faria), já era separada e criava o filho sozinha. Mas a partir da
trama de Cassiano Gabus Mendes é que a mulher deixou definitivamente a posição
de mocinha que precisava ser salva e foi, definitivamente, à luta através da
empreendedora Kiki Blanche, estreia
de Eva Todor na tevê em grande
estilo como a dona de um salão de beleza que era o principal cenário da novela.
Marcelo, querido, obrigadíssimo pelo seu incrível texto, que não é apenas uma
deliciosa viagem pelo universo da novela. É, praticamente, um tratado sobre o
panorama da mulher em nossas telenovelas. Parabéns! Sem mais delongas, vamos ao
texto:
MULHER, A LOCOMOTIVA MODERNA
Por Marcelo Rissato
Quando
ainda estava no ar a novela “Estupido Cupido”, uma linda e divertida trama de
Mário Prata em preto e branco, que teve apenas o penúltimo e último capitulo em
cores, “Locomotivas”,
de Cassiano Gabus Mendes, era
anunciada como a nova novela das sete, “totalmente em cores”.
Assim era o primeiro anuncio da novela no dia 11 de fevereiro de 1977: Estúpido
Cupido, últimos capítulos e vem ai: Loco-Motivas.
Com: Aracy Balabanian, Walmor Chagas e a participação especial de Lucélia
Santos. Loco-Motivas, a nova novela das sete da noite. A CORES.
Uma
trama envolvente e deliciosa que conquistava os telespectadores da época. A
história girava em torno dos salões de beleza e os núcleos se encontravam nesse
universo. Não era uma novela com grandes acontecimentos, porém colocava as
mulheres, não só como as protagonistas da história, mas também na posição de
independência e empreendedorismo, através do salão de beleza de Kiki Blanche
(Eva Todor). Além disso, a novela apresentava um novo visual e uma nova forma
de se expressar. Uma nova era estava começando para a televisão e para o país.
Talvez
esse contexto envolvendo a mulher não tenha sido adotado em vão pelo autor
Cassiano Gabus Mendes. Era uma época de mudança e a mulher estava em evidencia.
Se destacava em vários segmentos da sociedade e o ano de 1977 era o
protagonista para elas.
Mulher – A História
Sabe-se que o mundo sempre
pertenceu aos homens e que a mulher de acordo com a história ficou limitada aos
afazeres do lar, ficando habitualmente excluída de papéis relevantes para a
sociedade. Também é conhecido o fato de homens estarem acostumados a justificar
seu predomínio não somente ressaltando que a sua posição dominadora é a
natural, como também que a sua dominação resulta da inferioridade da mulher.
Contudo, sabe-se hoje que o rótulo de inferioridade teve como causa o contexto
histórico, a falta de acesso à cultura e, como consequência, o confinamento no
lar.
Acredita-se que desde os
primórdios dos tempos, a discriminação feminina acabou exercendo sobre a
sociedade uma conscientização e, a partir daí, surgiram reflexões sobre o que o
assunto pode ajudar na luta em prol da igualdade social, política e liberdade
de expressão das mulheres. No entanto, foi a partir do inicio do século passado
que a situação começou a mudar.
Dia
Internacional da Mulher
Talvez o episódio na Fábrica
de Tecidos Cotton nos Estados Unidos em 8 de Março de 1857, tenha
sido o ponto de partida para que em 8 de março de 1910, na Dinamarca, fosse
finalmente instituída essa data como o “Dia Internacional da Mulher”,
devido às mortes que ocorreram em virtude da greve que resultou no
desaparecimento de aproximadamente 130 tecelãs que foram carbonizadas
propositalmente pelo proprietário da fábrica e pela policia.
Com a eclosão do movimento
feminista e os estudos de gênero, se constituíram nos fatos que forçosamente
provocaram na sociedade uma mudança de atitude, diante das reivindicações que
se fazia. A luta dos grupos de mulheres contra o preconceito parecia, assim,
tomar forma. Apesar de importantes conquistas, a condição da mulher, ainda na
sua maioria, era de submissão e explorada pelo próprio sistema. Há que se
considerar, também, que na espécie feminina e dentro de cada mulher, ainda
restam as sobras da teimosa crença de que todas as mulheres são inferiores a
qualquer homem; e em cada homem, seja ele liberal ou libertino, uma antiga voz
interior ainda concorda com essa inferioridade.
O
Divórcio e a Locomotiva
Constatou-se que a época
decisiva para que a mulher pudesse conquistar um lugar merecido na sociedade,
se desse nos primórdios do século XX. Muitas foram as batalhas enfrentadas,
contudo a conquista se deu com o que pode-se chamar de “Lei Áurea Feminina”,
ou seja, uma metáfora de sua libertação que ocorreu em 1977. A mulher casava
para se livrar do cativeiro do pai e se tornava cativa do marido. Com a Lei
6515 de 26 de dezembro de 1977, a Lei do Divórcio, ela adquiria
finalmente sua independência, iniciando assim uma nova fase no seu
comportamento, no qual transformou a figura feminina na “locomotiva moderna”,
desempenhando o papel de comandante.
Apesar de tantas dificuldades, as mulheres conquistaram um espaço de
respeito dentro da sociedade, mesmo que as relações entre o gênero feminino e o
masculino ainda não sejam de total igualdade e harmonia.
Entretanto, evoluindo o homem
através dos múltiplos fatores que impulsionaram o gigantesco progresso da
ciência, da arte, da filosofia e da moral, a subordinação feminina foi-se tornando
quase inexistente. Assim, vê-se hoje a mulher, senão ao lado do homem no
desempenho de todas as atividades que a este diz respeito, pelo menos
desfrutando de uma liberdade maior, quer como companheira no lar ou no mercado
de trabalho, com direitos e garantias que lhe foram negados no passado.
Assim, na luta pela legitimação
dos seus direitos, muitas barreiras ainda precisam ser quebradas, muitos
direitos precisam ser conquistados e muitas medidas preventivas e punitivas
precisam ser levadas a cabo, mas enquanto ainda não acontece, a admiração e o
respeito pelas mulheres devem prevalecer.
Anos
“70” - A Mulher Locomotiva
Para a mulher, os anos 70
representaram um marco na sua independência perante a posição masculina no
âmbito social. Isso se refletiu na literatura e automaticamente na televisão.
Em 1977 o saudoso Cassiano Gabus
Mendes trazia para a TV uma novela que retratava exatamente esse
universo feminino. Era o tempo das Locomotivas. Ao som da música “Maria Fumaça”,
interpretada pelo grupo “Black Rio” na abertura, embalada ainda na
trilha pela música de mesmo nome da novela, Locomotivas, por Rita Lee, a
novela encantava homens e mulheres com a saga da ex-vedete Kiki Blanche (Eva
Todor), que tinha apenas uma filha legitima e um filho e as outras eram
adotadas. Com muito charme, uma novela deliciosa e sofisticada que trazia as
cores para o horário das sete. Era o inicio de uma nova era para a televisão e
para as mulheres.
A ex-vedete Kiki Blanche /
Maria Josefina Cabral (Eva Todor) possuía no Rio de Janeiro um salão de
beleza onde muitas das personagens se encontravam. Sua filha legitima Milena (Aracy
Balabanian) e os adotivos Paulo (João Carlos Barroso), Renata (Thais de
Andrade), Fernanda (Lucélia Santos) e a caçula Regininha (Gisela Rocha)
conduziam os encontros e desencontros dessa deliciosa história. O grande
conflito ficou em torno de Fernanda, que se apaixonou por Fábio (Walmor
Chagas), que amava Milena. Essa por sua vez, abria mão do amor em prol da irmã
adotiva, uma vez que sabia que Fernanda, na verdade, era sua filha legitima. A
revelação só veio no último capitulo, quando Fernanda desistiu de vez de Fábio
ao descobrir que sua irmã era a sua verdadeira mãe.
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Triângulo amoroso central da novela |
Em outro núcleo, Netinho (Denis
Carvalho) vivia cercado pelo amor possessivo de sua mãe (Miriam Pires), ao som
da música “Filho Único”, interpretada por Erasmo Carlos, o jovem se
apaixonou por Patrícia (Elisângela) e não teve seu amor abençoado pela mãe, sem
perceber que o seu grande amor morava ao lado: era a sua vizinha Celeste (Ilka
Soares). Quando Dona Margarida descobriu, o casal sofreu, lutou por esse amor e
ficou junto no final.
Ainda
tinha o português Machadinho (Tony Corrêa) que namorava com Gracinha (Maria
Cristina Nunes) e sofria com as intrigas de sua falsa amiga Lurdinha (Teresa
Sodré), porém o rapaz acabou se rendendo aos encantos da antagonista da trama,
Fernanda (Lucélia Santos).
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Lucélia Santos e Tony Correa em cena |
Cassiano Gabus Mendes foi um mestre na
teledramaturgia brasileira e responsável por grandes sucessos da televisão com
obras memoráveis, como “Anjo Mau, Elas por Elas, Tititi, Brega & Chique,
Que Rei Sou Eu?” e muitas outras. “Locomotivas”
não foi uma novela em vão, muito menos teve um texto banalizado. Ela marcou sua
época trazendo a mulher como comandante de um trem que podemos chamar de “Trem
da vida”, esse que até então tinha como maquinista os homens e com a
novela, Kiki mostrava que as mulheres eram capazes de assumir esse comando com
maestria. Na época, talvez muitas pessoas não entendessem a razão da novela
levar o nome ligado a um trem e o logotipo ser uma mulher com a parte inferior
de um biquíni a mostra, que soava ousado para aqueles tempos. Mas, Cassiano já
tinha os olhos voltados ao futuro, pois com a Lei do Divórcio (6515/77) do
mesmo ano da novela, a mulher adquiria sua liberdade podendo tomar as rédeas de
sua vida, casando-se, separando-se, tendo filhos com pai ou sem e ainda
trabalhando livremente, saindo de um cativeiro em que vivia e sendo a cabeça
desse trem, ou seja, sendo a Locomotiva.
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Elenco feminino da novela |
As
Mulheres na Televisão
Não só em Locomotivas
que a mulher estava sendo representada naquela época. A TV Globo trazia a mulher
em muitas de suas obras. Às 18 horas Dona Xepa, que era escrita por
Gilberto Braga e adaptada da obra de Pedro Bloch, mostrava a mulher feirante e
sem o marido que trabalhava para manter a casa e sendo a comandante do seu lar.
Várias outras novelas da época principalmente do horário das 18 horas trazia a
mulher como a protagonista, muitas eram adaptações de obras literárias como Nina,
Sinhazinha Flô, Maria-Maria, Gina, A Sucessora, Cabocla e várias outras.
Era o inicio de uma mudança que não só na dramaturgia estava presente, mas numa
sociedade que durante muito tempo deixou a mulher numa camada neutra e que
naqueles tempos, marcava uma nova era.
Nas séries a mulher também
estava presente. Ciranda Cirandinha mostrava uma juventude em busca de
sonhos e liberdade e em 1979 era a vez de Malu Mulher que representou
muito bem a mulher separada, uma vez que já no episódio piloto era abordado o
processo de separação de Malu (Regina Duarte) e Pedro Henrique (Dennis
Carvalho), intitulado “Acabou-se o que Era Doce”.
Após os anos 80, a mulher vinha
sendo representada com mais ênfase, podendo trabalhar, casar, separar e ir em
busca de seus sonhos como qualquer ser humano na televisão e na sociedade. Mas
isso já é outra história...
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ALGUMAS CURIOSIDADES:
- “LocoMotivas”
foi a primeira novela das sete totalmente em cores;
- Nos
créditos, Eva Todor assinava ainda como Eva Tudor, porém seu nome
verdadeiro é EVA FODOR, que foi alterado logo que chegou ao Brasil devido
à conotação errônea que poderia acontecer.
- Nos
créditos todas as escritas vinham em letra maiúsculas.
- Era
a segunda novela de Lucélia Santos
- Eva
Todor estreava.
- A
televisão exibia as cenas dos próximos capítulos e não do próximo capitulo
como nas novelas dos anos 80.
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MARCELO
RISSATO é escritor, jornalista, fotógrafo e colunista da Revista “Super Novelas”.
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Marcelo Rissato, o melão e eu. |
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7 comentários:
Cassiano era um mestre não apenas em escrever novelas, mas em criar excelentes personagens femininos. As mulheres sempre alicerçavam suas histórias (afinal de contas elas fazem isso na vida). Locomotivas era uma delícia! Assisti pouco na primeira exibição, mas não perdia um capítulo na reprise de 1986/1987. Parabéns, Marcelo! Texto incrível e ótimo panorama histórico das mulheres na sociedade e suas mudanças. O Melão sempre arrasando na escolha dos convidados!
bom, minha novela preferida de todos os tempos...pra mim é sinônimo de novela...queria morar naquele prédio da kiki blanche, tomar banho com a patrícia naquela piscina( uma vibe inês brasil he he) e de onde vem a personagem de que mais gosto, a fernanda, diaba, anja, vítima e algoz de todo a história...tempo que as novelas não tinham cidade cenográfica, as pessoas fumavam, bebiam coca-cola, iam à praia e namoravam nos carros... retrato de uma época do rio mesmo essa novela.
Oi Vitor,
Descobri seu blog ontem e passei o dia todo lendo todos os posts e comentarios.
Tenho 32 anos e sempre tive ganas de escrever. Adoro filmes/series/novelas. Minha serie favorita eh Anos Incriveis. Adoro o Kevin Arnold ser um "heroi" em constante conflito.
Seu blog me inspirou comecar escrever.
Vamos trocar mensagens, ok?!
Abcos ,
Art
Apenas um adendo: apesar da "pouca" idade, devo confessar que esse foi meu primeiro post.
Estou alegre por encontrar blogs como o seu, ao ler algumas coisas,
reparei que tem aqui um bom blog, feito com carinho,
Posso dizer que gostei do que li e desde já quero dar-lhe os parabéns,
decerto que virei aqui mais vezes.
Sou António Batalha.
Que lhe deseja muitas felicidade e saúde em toda a sua casa.
PS.Se desejar visite O Peregrino E Servo, e se o desejar
siga, mas só se gostar, eu vou retribuir seguindo também o seu.
Irena Kinaszewska, uma senhora que merece o meu respeito, não sabe o que é divórcio.
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