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Ana (Fernanda Vasconcellos) e Manuela (Marjorie Estiano) dividindo opiniões em "A vida da Gente" |
Independente de números de audiência sempre ingratos para o horário das seis, principalmente em época de horário de verão, “A vida da gente” vem tendo uma enorme repercussão desde seu início, causando verdadeiro frisson nas redes sociais durante sua exibição e promovendo um constante fórum de discussão digno de novela de horário nobre. Muito dessa repercussão se deve ao seu mote fortíssimo, no qual os papéis dramáticos aos quais estamos tão acostumados, não estão claramente delineados. Como bem já apontaram Patricia Kogut e Nilson Xavier em seus respectivos artigos, “A vida da gente” é uma novela sem vilões. Não se trata do eterno (e muitas vezes cansativo) embate entre o bem e o mal. Mas como uma novela consegue manter a ação constante e os conflitos sem que tenha um grande agente provocador?
O fato de não existir esse personagem capaz de alterar os rumos da trama não significa que essa trama não seja alterada. O grande vilão de “A vida da gente” são as circunstâncias que fizeram com que a protagonista Ana (Fernanda Vasconcellos) ficasse em coma por quatro anos e quando despertasse, percebesse que o grande amor de sua vida, Rodrigo (Rafael Cardoso), está casado com sua irmã Manuela (Marjorie Estiano), criando com ela a sua filha Julia (Jesuela Moro). Para Ana, é como se ela tivesse dormido em um dia e acordado no outro, mas nesse longo período, o amor entre Manuela e Rodrigo foi aflorando e se construindo aos poucos, sem que se dessem conta. Ou seja, os três são as vítimas do destino e do “tempo, tempo, tempo, tempo” e sua ação transformadora. E antes que alguém argumente que a mãe das moças, a problemática Eva (Ana Beatriz Nogueira) ou a obsessiva treinadora Vitória (Gisele Fróes) possuem a má índole necessária para serem consideradas vilãs, discordo em considerá-las como tal. Além de serem personagens pra lá de complexas, com qualidades e (muitos) defeitos, não se mede um vilão pelo grau de maldade do personagem, mas por sua atuação negativa e efetiva na vida do protagonista. E ambas as personagens não possuem força suficiente para tal.
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Camila (Carolina Dieckmann) em cena marcante de "Laços de Família" |
Hoje em dia o público está muito acostumado com essa dualidade bem X mal, mas a história da telenovela já provou que é possível sim criar tramas impactantes e envolventes sem que haja esse embate entre bons e maus. Manoel Carlos é mestre em provocar emoções e gerar discussões que vão além desse simplismo. Em “Laços de Família” (2000), por exemplo, a grande vilã era a leucemia que acometeu a jovem Camila (Carolina Dieckmann) e desencadeou vários conflitos passados e presentes, obrigou a mãe Helena (Vera Fischer) a revelar quem era seu verdadeiro pai, Pedro (José Mayer) a obrigando a se envolver novamente com ele para engravidar e tentar salvar a filha. Lógico que essa reaproximação gerou a maioria dos conflitos da novela. Em “Viver a Vida”, também de Maneco, o vilão foi o acidente sofrido por Luciana (Alinne Moraes) que a tornou tetraplégica e transformou a vida de todos a sua volta.
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Lucinha (Betty Faria) e Carlão (Francisco Cuoco) em "Pecado capital" |
Um exemplo das antigas é a clássica “Pecado capital” (1975), de Janete Clair, mestra desde sempre a criar mocinhos que fogem ao modelo de perfeição, ao contrário do que muitos acreditam como, por exemplo, Cristiano Vilhena de “Selva de Pedra” ou Herculano Quintanilha de “O astro”. Em “Pecado Capital” temos um bom exemplo dessa ausência de maniqueísmo. Na saga de Carlão (Francisco Cuoco) que acha uma mala cheia de dinheiro em seu táxi, não há nenhum personagem com mais força para desestabilizar seu mundo do que sua própria ambição, que o fez perder seu grande amor Lucinha (Betty Faria) para o empresário Salviano (Lima Duarte) e ainda lhe custou a própria vida.
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Costuireiros rivais de "Ti Ti Ti" |
Na primeira versão de “Ti Ti Ti” (1985), também não havia vilão. A trama era focada na rivalidade entre os costureiros Jacques L’eclair (Reginaldo Faria) e Victor Valentim (Luiz Gustavo). Embora a trama de Cassiano Gabus Mendes nos criasse a tendência a torcer mais pelo elo mais fraco dessa batalha, no caso, Valentim, seu oponente não era necessariamente um vilão. Ao contrário, dois anti-heróis maravilhosamente construídos em que o grande mote não era o bem vencer o mal, mas até onde iria essa batalha com ares cômicos e épicos.
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Ana (Cassia Kiss) e Clara (Claudia Abreu) |
Em “Barriga de Aluguel” (1990), reprisada atualmente pelo Canal Viva, também não há um antagonista criando mil planos diabólicos para derrotar os mocinhos. Aqui a autora Gloria Perez introduziu um mote tão polêmico quanto rico ao questionar sobre a verdadeira maternidade de uma criança: quem doou o óvulo ou quem a gerou? Os argumentos foram apresentados no decorrer da novela e o público refletia sobre quem tinha direito à criança. Não houve uma resposta pronta e nem uma solução fácil, como a própria vida.
Portanto, mesmo que não seja uma novidade a ausência de vilania em “A vida da gente”, ela é extremamente bem vinda nesse atual momento de nossa teledramaturgia em que o telespectador, muitas vezes, não é levado a pensar, nem provocado com temas realmente relevantes. Não há uma resposta sobre quem tem razão, Ana ou Manuela. Ambas têm suas motivações, ambas foram vítimas das circunstâncias e é justamente isso que vem causando tamanha comoção por parte do público, bem como torcidas acaloradas para as duas. A autora Lícia Manzo e sua equipe estão sabendo desenrolar com maestria, a cada capítulo, novos fios de um novelo que está longe de ser facilmente desembaraçado. Nesse emaranhado, nada é simples ou raso e tudo pode mudar de acordo com o ponto de vista. Assim como a vida da gente.
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