Uma das maiores alegrias desta seção que convida pessoas a publicarem seus textos é o fato de poder contar com grandes amigos. E o nosso atual convidado é um deles (no sentido literal e, principalmente, no figurado). Da pessoa Ronaly, posso dizer que é uma das mais generosas, nobres e sensíveis que conheço. Do colunista convidado, suas credenciais também são as melhores: é daquelas pessoas que conhecem e falam de televisão com a propriedade de quem vivenciou e aprendeu assistindo à televisão, ou seja, na prática. Ronaly também é admirador e conhecedor de novelas mexicanas (o espaço também está aberto pra elas, viu?) e um dos maiores fãs de “Os normais” que conheço. Mas ele faz sua estreia aqui no melão (sim, pois espero que seja o primeiro de muitos textos) sobre “Chiquinha Gonzaga”, uma minissérie que encantou a todos, não só pela riqueza da história da compositora, mas também pela competente produção, pelo texto inspirado e pelo elenco de primeira, que contou com Regina e Gabriela Duarte, excelentes, vivendo o papel-título em fases diferentes. O melão abre alas para o queridíssimo Ronaly e brinda seus leitores com essa oportuna lembrança.
“Ô abre alas, que eu quero passar...”
Por Ronaly Reginaldi Júnior
Foi em 1999!
Engraçado falar de coisas que aconteceram no século passado, uma vez que parece que ainda nem o deixamos para trás. Imagine, então, estar próximo ao novo século e contar uma história que aconteceu no século anterior. Sim, muita loucura, mas esta foi a proposta de Lauro César Muniz e Marcílio Moraes quando apresentaram a sinopse de “Chiquinha Gonzaga” à direção da Rede Globo.
Com direção de Jayme Monjardim e com uma trilha incidental especialmente composta por Marcus Vianna, “Chiquinha Gonzaga” fazia com que o mês de janeiro de 1999 fosse bem especial. A minissérie é uma das melhores e mais bem produzidas pela Rede Globo em termos de detalhes de roupas e cenários, escalação de elenco, tramas, qualidade e fidelidade. Era o ‘padrão globo’ sendo cada vez mais aprimorado em suas minisséries. Esse ‘padrão’ já tinha sido excelente com ‘Hilda Furacão’ no ano anterior, mas em ‘Chiquinha’ houve um esmero maior!
Além desse capricho todo, sempre é interessante ver uma obra que retrata algo de nossa própria história, tendo em vista que muitos não se esforçam para conhecer ou tem memória curta para isso!
Interessante comentar sobre “Chiquinha” justo numa época (2011) em que a discussão sobre preconceitos está tão em alta, como bullying e afins. Afinal, Francisca Edwiges Neves Gonzaga foi uma mulher muito a frente de seu tempo e que sofreu toda sorte de preconceitos (ou seria azar?).
Chiquinha Gonzaga era filha de José Basileu e de Rosa Maria. O pai era coronel do exército; a mãe, uma mulata humilde. Seu nascimento acabaria por atrapalhar esse romance escondido do Coronel, que resolve entregar o fruto desse relacionamento a um convento para adoção (uma das cenas mais belas da minissérie, mostrada no primeiro capítulo, tendo a ótima atuação de Odilon Wagner e Solange Couto, nos papéis dos pais de Chiquinha). Após arrepender-se de tal ato, Coronel Basileu resolve oficializar a sua situação junto a Rosa Maria, casando com ela e criando a filha.
Os anos passam e a jovem Francisca, apesar da educação rígida de seu pai, torna-se uma adolescente com ideais muito a frente de seu tempo. Fez seus estudos normais com o Cônego Trindade e aulas de músicas com Maestro Lobo. Mas, sempre que podia, freqüentava rodas de lundu, umbigada e outros ritmos africanos, procurando sua identificação musical. Aos 16 anos, por imposição do pai, casa-se com Jacinto Ribeiro do Amaral, oficial da Marinha brasileira, que apesar de amá-la, privava Chiquinha de sua grande paixão: a música. Com Jacinto, Chiquinha teve três filhos: João Gualberto, Hilário e Maria do Patrocínio.
Devido aos seus ideais, Chiquinha acaba não suportando o autoritarismo e as humilhações do marido e se separa dele, o que foi um escândalo na época. Leva consigo apenas o filho mais velho, pois o marido e a família não permitem que Chiquinha cuidasse dos filhos mais novos (Hilário é criado pela tia de Jacinto – grande momento de Ângela Leal na minissérie, interpretando a tia-amante de Jacinto. Maria é criada como filha do Coronel Basileu, e só descobre toda a verdade já adolescente).
Ela lutou muito para ter os 3 filhos juntos, mas foi em vão. Sofreu muito com a separação obrigatória dos 2 filhos imposta pelo marido e pela sociedade preconceituosa daquela época, que impunha duras punições à mulher que se separava do marido.
Anos mais tarde, reencontra um antigo amor do passado, o engenheiro João Batista de Carvalho. Chiquinha e João Batista viveram juntos por muitos anos e tiveram uma filha, Alice Maria. Porém, devido as traições do companheiro, Chiquinha separa-se dele, e mais uma vez perde uma filha, pois João Batista não permite que Chiquinha criasse Alice. Apesar disso tudo, Chiquinha foi muito presente na vida de todos os seus quatro filhos, mesmo só criando um deles. Ela sempre estava acompanhando a vida deles e tendo contato.
Passa a viver em função da música, tocando em lojas de instrumentos musicais, dando aulas particulares de piano e apresentando-se em festas (junto com seu amigo Joaquim Antonio Callado, interpretado magnificamente pelo saudoso Norton Nascimento) para sustentar seu filho, João Gualberto. Dedicando-se inteiramente a música, obteve grande sucesso, mesmo sofrendo todo preconceito da sociedade. Foi a primeira chorona (pianista de choro), foi autora da primeira marcha carnavalesca e também a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil.
Mas sua vida, tão marcada por paixões ainda lhe reservaria uma surpresa: Chiquinha tem um intenso caso de amor com Joãozinho, um jovem com idade para ser seu filho (ela já estava com 52 anos nessa época e ele com 16). Foi com Joãozinho que ela viveu até o último dia de sua vida.
Dentro deste universo mágico que foi a vida de Chiquinha Gonzaga, os autores resolvem utilizar de um recurso extraordinário: a homenageada assiste a uma peça no Teatro Municipal, onde é contada a sua vida. O artifício dos autores serviu para passagens de tempo dentro da minissérie, porém fez com que, no último capítulo, Chiquinha Gonzaga pudesse fazer um balanço de toda a sua vida e trajetória antes de morrer. O recurso se faz interessante, pois fez com que a minissérie não fosse apenas uma biografia teledramatúrgica.
Mesmo tendo um elenco magnífico, é impossível não destacar algumas atuações: Danielle Winitts deu um show interpretando Suzette na primeira fase da trama. Infernizou o romance de Chiquinha e JB o quanto pôde! Na segunda fase, a personagem foi interpretada por Suzana Vieira e lembro-me de uma entrevista onde ela dizia que era “uma honra dar continuidade a uma personagem que fora tão bem conduzida pela Danielle Winitts, pois ela é uma bonequinha!”. Era a segunda vez que Danielle Winitts interpretava uma personagem jovem que seria vivida por Suzana Vieira. Tal fato já tinha acontecido em ‘A Próxima Vítima’.
Carlos Alberto Riccelli também defendeu bem seu personagem! Aliás, na minha opinião, é o seu último grande trabalho em tv. É impossível falar em Chiquinha Gonzaga e não lembrar da cara de cafajeste que ele fazia ao interpretar o João Batista.
Marcelo Novaes é o grande destaque dentro da trama, na minha opinião. Afinal, ele conseguiu dar vida ao oficial da Marinha Brasileira extraordinariamente! Após tantos anos atuando em comédias, participar de uma trama como um militar rígido foi um grande desafio em sua carreira e, com certeza, um divisor de águas. O interessante foi a escolha de Serafim Gonzales para interpretar Jacinto na velhice, pois o ator tem uma semelhança incrível com Marcelo Novaes.
Impossível não destacar também as atuações de Caio Blat, Christine Fernandes, Daniela Escobar e Murilo Rosa (Joãozinho, Alzira, Amália e Amadeu, respectivamente). Caio Blat e Murilo Rosa já vinham de trabalhos espetaculares: Caio Blat passou pela Globo no começo da carreira, mas se firmou em tramas do SBT, como ‘Éramos Seis’ e ‘As Pupilas do Senhor Reitor’; Murilo Rosa vinha da Manchete. Ambos brilharam com força: o primeiro, interpretando o jovem amante de Chiquinha (quando esta já tinha 52 anos), o segundo como o marginal Amadeu, capaz inclusive de cafetinar a sua namorada.
Christine Fernandes vinha de papéis pequenos. Conseguiu cativar, dando vida a Alzira, namorada de Amadeu. Sua atuação garantiu lugar em ‘Esplendor’, no ano seguinte. Daniela Escobar vinha de papéis secundários, mas teve sua carreira alavancada após interpretar Amália, uma mulher que tentava seguir o exemplo de Chiquinha Gonzaga e também ser uma mulher independente no começo do século XX.
Mas o grande momento mesmo foi de Gabriela e Regina Duarte: impecáveis como Chiquinha Gonzaga nas três fases da trama! As duas já haviam atuado juntas algumas vezes, como mãe e filha. No ano anterior, ambas protagonizaram ‘Por Amor’, mas apesar do sucesso da trama, muitos criticaram a atuação de Gabriela Duarte. Porém, a atriz provou que tem talento (e muito) ao dar vida a jovem Chiquinha. Uma das cenas mais emocionantes da minissérie é quando Chiquinha desobedece as ordens de seu marido, Jacinto, para tocar o piano... Ela senta, abre o teclado e começa a tocar. Jacinto então revolta-se com a esposa e fecha com violência o teclado do piano, machucando as mãos da pianista.
Regina Duarte... Bem... Ela dispensa comentários em sua atuação. Recebeu da filha a missão de continuar com a belíssima história de Chiquinha até os últimos dias de vida da musicista. A maquiagem e a máscara de silicone utilizada para envelhecer fizeram com que a atriz ficasse bem semelhante a Chiquinha Gonzaga.
Sendo esta a história de uma musicista, como não falar em música? Pois a música de Chiquinha Gonzaga esteve muito presente durante toda a trama. Além da trilha composta por Marcus Vianna especialmente para a minissérie, astros da MPB (como Joanna, Emílio Santiago, Daniela Mercury, Beth Carvalho, entre outros) regravaram grandes sucessos da compositora. “Lua Branca”, “Ô Abre Alas”, “Forrobodó”, “Romance da Princesa” e outros sucessos estavam na trilha sonora. Clipes musicais também foram gravados e passavam durante a exibição dos créditos finais de cada capítulo da minissérie.
Chiquinha Gonzaga foi uma mulher forte. Ensinou que devemos sempre lutar pelos nossos ideais. Ter garra, força de vontade e nunca desistir na conquista daquilo que desejamos! Mas, acima de tudo, ter respeito! Respeito por tudo e por todos! Apesar de sempre ter sido atacada pelos preconceitos da sociedade, ela sempre foi uma batalhadora pela conquista de seus ideais particulares e pelos ideais coletivos. Lutou pela liberdade dos escravos, pela república, mas lutou também para que a mulher fosse reconhecida na sociedade.
Morreu aos 87 anos, em casa, ao lado de seu querido Joãozinho, no dia 28 de fevereiro de 1935, as vésperas do carnaval. Morreu... Mas sua música e sua história será eterna!
“... E ela partiu, me abandonou assim. Ó lua branca, por quem és, tem dó de mim!”
Obrigado, Ronaly querido! O melão é todo seu. Volte sempre!!!
12 comentários:
Nossa Ronaly! como vc escreve bem!!! vc tem talento rapaz! continue escrevendo ! adorei e saboreei cada linha do seu texto sobre essa minissérie q não assisti com a devida atenção e q agora após ler seu texto, fiquei com muita vontade de ver!
abração!
E o pior é que o Ronaly fica pagando de modesto. O texto está incrível, super bem escrito!
Também não valorizei a minissérie durante a reprise do Viva e agora me arrependo muitíssimo.
Muito bom o texto! Parabéns ao Ronaly por escrever tão bem sobre essa minissérie maravilhosa que é Chiquinha Gonzaga. Adorei.
Queridos... Pra escrever é necessário um pouco de paciência e esta é uma virtude que, digamos, eu não tenho muito, pois sou uma pessoa que gosta de tudo pra ontem! rsrs
Enfim... Muito obrigado pelos comentários e, principalmente, obrigadão ao Vitor por publicar meu texto. Foi ótimo atender o seu convite e escrever pro Melão. E pode deixar que eu volto com mais algum texto... Quem sabe com alguma mexicana? ;)
Olá amigo, tudo bom? Adorei esse post sobre "Chiquinha Gonzaga", foi uma minissérie inesquecível mesmo...
Abraços
Jéfferson Balbino
www.jeffersonbalbino.zip.net
Ótima análise do Ronaly. Já sabia das muitas qualidades como amigo, agora também conheço as do escritor. Que esse talento não permaneça mais adormecido!
Adorei saber um pouco mais sobre a Minissérie. Na época eu não dava tanto valor a essas produções. E a Regina Duarte envelhecida foi um trabalho bem elaborado!
Lucas - www.portalcascudeando.blog.com
Parabéns, você teve uma visão impar e a colocação dos fatos com perfeição> Tive a oportunidade de assistir chiquinha Gonzaga, mas em sua descrição pareceu-me aguçar a imaginação e ver o seriado por outros angulos, tais como, descriminações, injurias, e bullyng e preconceitos que até hoje ocorrem em nossa sociedade, dita civilizada.Não negue sua paciência, pois é um dom dos sábios, e te encaixo neste contexto. Que esta História seja o começo de uma infinidade de relatos que acompanharemos com maior prazer.Abração meu amigo da Juneida e Gianni.
Uau... que texto marravilhoso, Ronaly. Sabe que não assisti Chiquinha Gonzaga, mas depois desse texto me deu uma baita vontade. Lembro de sua exibição em 99, mesma época de Suave Veneno e O Auto da Compadecida. O tempo passa muito rápido mesmo... realmente foi no século passado.
Parabéns pelo EXCELENTE texto!!!
Uma das melhores miniséries da Globo.
Parabéns por relembrá-la neste excelente texto, Ronaly!! Vc é o cara
Nossa, você fez um panorama fantástico da minissérie, Ronaly!
Era muito nova na época em que esteve na Globo e agora tenho a oportunidade de assiti-la no Viva.
Não perco um capítulo!
Lições de vida intermináveis, principalmente para as mulheres, que muitas vezes acabam esquecendo o quanto eram desprezadas na sociedade e quanta luta foi necessária para que vivamos hoje um início de igualdade entre os sexos!
Uma fonte inspiradora para que continuemos a lutar contra todas as injustiças do mundo, sempre com a pureza de ideiais e sentimentos de Chiquinha!
Ele diz que não sabe como conseguiu escrever 2 páginas inteiras. Texto excelente, e condizente com a minissérie representada!
"Chiquinha Gonzaga" foi um dos maiores clássicos do que - acho eu - podemos chamar de "televisão de arte", sem perder o quê de folhetim que uma minissérie necessita. Primoroso texto de Lauro César Muniz, com a direção mais que primorosa de Monjardim - e uma Regina Duarte totalmente entregue a uma personagem eterna.
Parabéns ao Ronaly, parabéns ao Vitor, e desculpem pelo comentário com esse delay todo. hahaha
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