sábado, 30 de abril de 2011

VALE TUDO: A NOVELA DAS SETE MULHERES



A maioria das vezes em que “ValeTudo” é lembrado pelo senso comum, os primeiros personagens que vêm à cabeça são, basicamente, as antológicas vilãs Odete Roitman e Maria de Fátima, vividas respectivamente por Beatriz Segall e Gloria Pires. Mas seria injusto dizer que “Vale Tudo” se resumiu a elas, como é igualmente injusto o título desse artigo, já que também tivemos personagens masculinos maravilhosos e igualmente complexos, como Ivan (Antonio Fagundes) e Marco Aurélio (Reginaldo Faria). O primeiro era o mocinho da trama, mas com quase tantos defeitos quanto o segundo, que era o vilão. Ivan era ambicioso, egoísta, carreirista e nem tão honesto assim. Já Marco Aurélio, o vilão, apesar de injusto, machista, desonesto e cínico, por outro lado, era um pai zeloso e preocupado, inclusive com o enteado. Esta é a prova de que, em “Vale Tudo”, nada é óbvio ou clichê. Tudo é mais complexo e mais humano, como a própria vida. Por isso, mais do que um retrato da corrupção no país, “Vale Tudo” continue cativando tanto o público até hoje: apesar das tramas rocambolescas, como toda boa novela, os personagens poderiam ser cada um de nós. Partindo desse princípio, uma rápida olhada no universo feminino da trama nos mostra como sete mulheres foram fundamentais para a trama. Diferentes entre si, são, praticamente, arquétipos de comportamento de nossa sociedade e merecem destaque, já que, poucas vezes em uma novela, tivemos sete personagens femininas tão fortes e cheias de possibilidade.


Não é exagero dizer que Raquel Acioly, a grande heroína da trama, que após sofrer um golpe da própria filha, perde tudo e reconstrói sua vida do nada, é a alma e o coração da novela. Das tripas coração, ela toma para si as rédeas de sua vida e é o grande exemplo positivo da trama e fez com que o público se solidarizasse com ela, vibrasse com suas viradas e se emocionasse com seu triunfo. Excessivamente ingênua, no início da trama, Raquel aprende através da dor e do trabalho e sempre renasce após cada derrota. Uma verdadeira fortaleza. E, certamente, toda essa intensidade de emoções não seria a mesma se sua intérprete não fosse ninguém menos que Regina Duarte, a atriz mais popular do Brasil, que não teve medo do ridículo, se entregou de corpo e alma, de maneira intensa, flertando muitas vezes com o patético, mas dando uma verdade impressionante ao papel. O público jamais ficou indiferente a ela, seja se irritando com seus gritos e com sua inocência exagerada, seja sentindo na própria pele, o drama da mãe sofredora e da mulher valente que segura seu destino à unha. O interessante é que, mesmo Raquel, o baluarte dos bons valores da novela, também dá suas derrapadas éticas, ao se encontrar com o amante na pousada de uma amiga em comum da esposa dele. Enfim, em um mundo cheio de falhas e imperfeições, Raquel não foi exceção.



Do outro lado da arena, está Maria de Fátima, a filha desnaturada, cuja ambição e vontade de ascender socialmente, eram maiores do que tudo, inclusive do que o amor pela própria mãe. Um aspecto interessante dessa personagem é que, diferente da maioria das vilãs, Fátima não é vingativa, nem rancorosa. Seus atos de vilania eram movidos, pura e simplesmente pela ambição. Fátima deu um golpe na própria mãe, roubou o namorado da melhor amiga, vendeu o próprio filho, mas nada disso era pessoal. Tudo tinha como foco a vitória e, para isso, ela não via obstáculos. Outro aspecto incomum dessa vilã é que ela sofria e se dava mal o tempo todo, até mais do que a heroína, o que fazia com que o público torcesse muitas vezes para que suas armações dessem certo. Fátima se metia em enrascadas o tempo todo e sempre escapava delas por um triz. Mas o que realmente é fascinante na personagem também é sua complexidade. Fátima tinha seu calcanhar de Aquiles: o amor por César (Carlos Alberto Ricceli), que lhe rendeu sua derrocada. Além disso, Fátima sofria cada vez qua fazia mal à mãe e tentou várias vezes se reaproximar dela. Dentro de seu conceito de moral, Fátima nunca desejou fazer mal a Raquel, embora, muitas vezes, isso fosse necessário para que alcançasse seus objetivos. E nem preciso dizer que Gloria Pires deu um show. A atriz compreendeu todas as nuances e complexidades da personagem e fez o público vibrar e reagir o tempo todo com seus atos. Com muita justiça, Gloria entrou definitivamente para o rol das grandes atrizes com a personagem.


Símbolo da injustiça, da corrupção e do poder dos ricos sobre os pobres, Odete Roitman, a princípio, nos parece o verdadeiro cão chupando manga. Implacável com os inimigos, insensível ao sofrimento humano e com um conceito bem deturpado de moral, a vilã diz frases desconcertantes sobre o país, por quem nutre um profundo desprezo. Há quem concorde com muitas dessas declarações, mas o fato é que, por trás dessa imponente couraça, se esconde uma mãe zelosa, sofre com a infelicidade dos filhos. Em uma das melhores cenas da novela, vimos uma Odete frágil, desarmada, impotente diante do alcoolismo da filha, pedindo perdão à irmã Celina, de quem tanto tripudia. Verdadeiro show de Beatriz Segall, que viveu Odete com tanta perfeição, que precisa provar até hoje que é capaz de viver personagens de outra natureza.



Falando em show de interpretação, talvez a grande injustiçada da novela seja Nathalia Thimberg, que viveu a doce e cordata Celina, irmã da megera Odete e constantemente dominada por ela. Apesar de uma personagem aparentemente fraca, a interpretação de Nathalia esteve longe de ser apagada. Nem sempre tão doce assim, Celina, muitas vezes, precisou ser sonsa e dissimulada para sobreviver à dominação da irmã megera e durante boa parte da trama foi a responsável por tirar o sono de Maria de Fátima, ao ameaçar desmascará-la perante todos. E Celina se revelou dona de um humor irônico e de um sarcasmo tão inteligente quanto o da própria Odete. A atriz conseguiu construir uma Celina apaixonante, aparentemente tola e alienada. Mas em certos momentos, vimos que, mais do que essência, era uma estratégia de sobrevivência da personagem. A atuação de Nathalia Thimberg, a exemplo das atuações de Regina Duarte, Renata Sorrah, Gloria Pires e Beatriz Segall, merece entrar para o panteão das grandes interpretações da novela.



E como se não bastasse, o clã dos Roitman ainda conta com outra personagem marcante: Heleninha. Disparada a melhor atuação de todos os tempos de uma personagem alcóolatra, Renata Sorrah deitou e rolou com as inúmeras possibilidades de sua personagem. Frágil, insegura e completamente dominada pela mãe, Heleninha convive com a culpa de se achar responsável pela morte do irmão, sem saber que a culpa de tudo fora da própria mãe. Em seus momentos sóbrios, a pergonagem tem sido chamada de chata pelos usuários do Twitter que acompanham a exibição da novela e publicam seus comentários simultaneamente. Mas a cada porre, é uma explosão de elogios à atriz, cuja entrega ao sofrimento da personagem, é absolutamente impressionante. Heleninha vai da angústia à euforia em um passe de mágica, o que poderia ser um trampolim para a caricatura, se fosse defendida por uma atriz mediana. Mas em se tratando de Renata Sorrah, o público também acompanha e compartilha desse carrossel de emoções, indo ás gargalhadas com a divertida embriaguez de Heleninha e também sofrendo com suas terríveis consequências. Personagem complexo, atriz superlativa.



No meio de tanta fera, coube à Lídia Brondi o mais ingrato dos personagens: o de mocinha romântica. E com tantas personagens femininas fortes e avassaladoras na trama, seria até normal que a “chérie” Solange Duprat ficasse totalmente ofuscada. Mas não foi o que aconteceu. Sim, Solange era lindinha, meiga, amiga, adorável, mas também soube ser lutadora e não se intimidou diante dos golpes da falsa amiga Maria de Fátima e enfrentou Odete de igual pra igual algumas vezes. Além do talento e carisma da atriz, também foi fundamental a construção de uma mocinha moderna, que lutava pelo que queria e não hesitava em partir para uma produção independente (muito em moda na época) quando quis ser mãe. Suas roupas, penteados e sua gíria “chérie” viraram mania na época e até hoje, há quem diga que Solange é uma das melhores mocinhas de novela, já que foi uma perfeita combinação dos valores positivos que uma mocinha deve ter, mas sem se render à chatice, na maioria das vezes, inerente a esse tipo de personagem.


Fechando o timaço, está Leila, que se manteve discreta na maior parte da trama. No início da novela, fazia um sutil contraponto com a Raquel. Enquanto esta última, não hesitava em arregaçar as mangas e trabalhar, Leila queria o caminho mais cômodo e não via problema algum em ser sustentada pelo ex-marido. Chegou a trocar o homem que amava, Renato, por outro que lhe oferecia mais estabilidade emocional e financeira. Leila nunca foi uma vilã, tampouco tinha a integridade de uma Raquel ou de uma Solange. No meio desse caminho, Cassia Kiss, uma excelente atriz em franca evolução, soube dar coerência a essa personagem que se mostrou fleumática na maior parte da trama até sua explosão ao assassinar Odete Roitman em seu único momento de descontrole emocional da trama. Isso garantiu a Leila o passaporte para a galeria de personagens antológicos de nossas novelas.
Por essas e outras, “Vale Tudo”, até hoje continua sendo uma novela exemplar que, se não subverteu a fórmula surrada do folhetim como “Roque Santeiro”, por exemplo, ao contrário, se apropriou dessa fórmula como poucas novelas, dando um gás totalmente novo e criativo. Mesmo que tenha contado com atrizes maravilhosas, que defenderam tão bem seus personagens, merecem aplausos efusivos o trio de autores, Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, por criar personagens tão densas e ricas do universo de “Vale Tudo”, uma verdadeira aula de roteiro, direção e interpretação.

Vitor de Oliveira 


13 comentários:

Eddy Fernandes disse...

Tenho uma teoria pra esse sucesso todo, que foge um pouco dessa questão social tão alardeada. A novela continua atual? Ok, continua. O país segue num mar de impunidade e corrupção? Segue.

Mas o grande barato de "Vale Tudo" e que gera, na minha opinião, essa identificação toda é esse desenho sinuoso dos personagens. A humanidade que cada um transmite toca porque é palpável, tangível. O espectador não só se vê refletido na tela, como também se surpreende com as jogadas folhetinescas tão bem arquitetadas pelos autores.

Sem dúvida, uma grande novela. E eu mordi a minha língua bonito. Antes da reprise, não achava "Vale Tudo" lá grandes coisas. Sorte que eu estava enganado.

TH disse...

Uma excelente crítica, Vitor! Uma das melhores do Melão, ouso dizer.
Tal qual sua defesa para "Salvador da Pátria", sua visão sobre os "ofuscados" pela mídia de Vale Tudo foi digna de nota. Parabéns!
Além das mulheres citadas, a menção aos homens - tão bem delineados em Vale Tudo, foi bem oportuna. Também ressalto o talento e sensibilidade de Cassio Gabus Mendes - seu bom caráter Afonso, na minha opinião, passa longe dos mocinhos débeis que o perfil constuma mostrar nas novelas. E sua química com Lidia Brondi excedeu as barreiras da ficção - tanto que estão casados até hoje.
Vale Tudo é dessas novelas-modelo, como você falou. Tudo nela se encaixou bem - a humanização dos personagens, trilha sonora, abertura - lembro-me que, na época, Cazuza disse que uma das grandes alegrias de sua vida (que estava "sentenciada" pelo vírus HIV) era poder ver Gal cantando sua música daquela maneira tão forte, todos os dias, na novela. O entrosamento entre os autores, os fortes diálogos e atuações impecáveis contribruiram e muito pra Vale Tudo ser lembrada até hoje.

Super abraço!

Evana R. disse...

Excelente post, Vitinho! Essa semana eu estava assistindo à novela e pensando justamente em como os personagens não são assim, 100% bonzinhos ou 100% supermalvados; enquanto eu assistia aos capítulos me surpreendi com o lado mãe zeloza da Odete Roitman. Ah, e Celina é mara! =D

aladimiguel disse...

Sem dúvida dessas sete maravilhosas interpretações a minha favorita é a Solange de Lídia Brondi, um amor de personagem, moderna e chique! Muitas saudades do carisma e talento de Lídia Brondi, no meio desse mar de interpretações horríveis atuais que somos impostos a aturar nas novelas.

Abraços amigo !

Daniel Pepe disse...

Acho super justo quando outras personagens, além das vilãs, são lembradas e homenageadas, porque de fato merecem. Gosto muito da Celina, por quem Nathalia Timberg conseguiu mostrar magnificamente a evolução da personagem. Não achei a personagem nada apagada, como muitos costumam dizer.

No mais, é fantástico como de uma novela já comentada diversas vezes na mídia, em fóruns e blogs sempre se consegue extrair ricas análises. Sinal de que é de fato uma obra cheia de conteúdo.

Ivan disse...

O texto do Melão, além de super bem escrito, é uma delicia de ler! concordo com cada vírgula e é por isso q essa novela é tão boa! e foram novelas como VALE TUDO que colocaram o Brasil, como o melhor produtor de novelas,os folhetins não eram vazios e os personagens tinham nuances e contradições.
Parabéns Vitor!

Eduardo Vieira disse...

É a novela certa no tempo certo. Quem nunca havia falado de amor e ambição na mesma sinopse? Mas é isso que o Vitor tão bem falou....os autores subverteram mesmo tais temáticas as atualizando àquele tempo de uma maior falta de respeito e amor próprio do povo brasileiro.Bom rever essa novela, pois não entendia os papéis da Rachel e da Helena, sempre achei as duas muito chatas e até são, mas nada como envelhecer pra entender que a gente não é Fátima a vida toda.

Anônimo disse...

Concordo! A novela certa no tempo certo um das melhores novelas

RÔ_drigo disse...

Texto impecavel, de uma novela tão boa quanto!!
Eu que na epoca tinha 2 pra 3 anos e nem lembro pq ñ vi na reprise,rs.
Tenho quase certeza que ela é a minha favorita...
Que bom que você valorizou a grande Nathalia Timberg, pq como vc bem disse personagem pouco valorizado(mesmo sendo mto bom) de uma senhora atriz!!
Mto bom Vit!

! Marcelo Cândido ! disse...

Um sucesso ontem e hoje com certeza!

Nilson Xavier disse...

Texto perfeito
e uma justa homenagem às mulheres que dominaram Vale Tudo!

Todos enaltecem Beatrix Segall, Gloria Pires e Renata Sorrah
e sempre tive a impressão de que muitas vezes a chata Raquel de Regina Duarte era subestimada por todos.

Acho a interpretação e a entrega de Regina tão memorável quanto a atuação das demais atrizes, não desmerecendo nenhuma.

E Sorrah, por mais chata que sua personagem fosse quando sóbria, fazia valer cada espera pelos porres de sua Heleninha!

Parabéns Melão, continuamos na preferência!

Anna Dourado disse...

Vitor, em primeiro lugar parabenizo-o pelo Blog. Muito lindo mesmo. Segundo, amei o post, pois acompanho cada capitulo da novela como se fosse a primeira vez. Para mim foi uma das melhores novelas, se nao a melhor, de todos os tempos. E por incrivel q pareça, com alguns senoes, continua atualissima. Valeu o Post. Bjs Anna Saraiva RS

Anônimo disse...

Engraçado que depois destes shows, Cássia Kiss e Nathália Timberg foram parar no "Pantanal" da Manchete!
Lucas - www.portalcascudeando.blog.com

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